segunda-feira, 29 de outubro de 2007

COLÉGIO FÉLIX MIRANDA – MÚSICAS
GRUPO PESQUISA PROFESSOR-LEITOR
FESTAS DE ARROMBA DO SAMBA
Por Fabio Gomes

Um dos maiores sucessos da Jovem Guarda foi "Festa de Arromba" (Roberto Carlos - Erasmo Carlos). Lançada por Erasmo Carlos em 1965 em seu LP A Pescaria (RGE), tornou-se o hino do movimento, sendo cantada ao final de cada programa Jovem Guarda na TV Record ao longo de quase três anos. Sua presença também é obrigatória em discos, shows ou programas que lembrem a época. Entre os ingredientes que contribuíram para tanto sucesso, certamente está a bem-humorada letra, na qual é narrada uma festa a que compareceriam os ídolos do nascente rock brasileiro, citados nominalmente - incluindo até um dos autores da música, Roberto Carlos (que teria chegado "de repente", "em seu novo carrão"). Esta menção a músicos vivos não era muito comum, menos ainda na quantidade em que ocorre em "Festa de Arromba": 16 na parte cantada, mais 7 na parte falada do final. Aliás, o finzinho tem sido cortado nas reedições recentes em CD desta gravação. Não se ouve muito bem Erasmo dizendo:
"Caramba! Até o Simonal, o Jorge Ben e o meu amigo Jair Rodrigues. A festa!"
Naturalmente, o samba, que já nasceu ligado a festa, também tem suas "festas de arromba". A primeira, inclusive, é bem anterior à de Roberto & Erasmo. "Primeira Linha" é de Heitor dos Prazeres e foi gravada por Benedito Lacerda (sim, cantando! Ele ainda tentava conciliar as carreiras de cantor e flautista, acabando por optar pela segunda) na Brunswick em 1930:
"O Mário Reis/ Ele é branco de verdade/ De grande capacidade/ E é um bom cantador./ E o Caninha, o Donga/ E o Pixinguinha/ São todos camaradinhas/ Inclusive o Sinhô./ Nesta função/ É melhor chamar o Freitas/ Porque nisso ele se ajeita/ O pagode fica bom./ Vem o Ary, o Vogeler/ E o Thomazinho,/ Que já conhece o caminho/ E a numeração do portão./ Eu convidei/ Também o Chico Viola/ Que é um rapaz da escola/ Danado pra vadiar/ Eu fiquei triste/ Quando vi o João da Gente/ Que é muito impertinente.../ Fez o pagode acabar."
Alguns dos citados na letra são facilmente identificáveis, casos de Mário Reis, Caninha, Donga, Pixinguinha e Sinhô. Outros compositores citados: "Freitas" era José Francisco de Freitas, autor de "Dorinha, Meu Amor"; "Ary" era o Barroso; "Vogeler" certamente se refere a Henrique Vogeler, um dos autores de "Linda Flor" (um outro Vogeler possível seria o cantor Jaime Vogeler, que começou a gravar em 1929, mas só foi se tornar conhecido do grande público em 1932). "Thomazinho" era J. Thomaz, ex-Oito Batutas e então líder do Brazilian Jazz. O pseudônimo "Chico Viola" era usado por Francisco Alves em suas gravações na Parlophon entre 1928 e 1931. Já "João da Gente" era como se assinava o cronista carnavalesco e compositor João da Silva Morgado, ligado ao Clube dos Democráticos e parceiro de Heitor dos Prazeres.
A menção a artistas vivos era raríssima na época, só se tornando comum na música brasileira a partir dos anos 60. Por isso, demorou muito para aparecer novos exemplares de "festas de arromba", como o samba "Casa de Crioulo", gravado por Gasolina. Não consegui localizar o nome do(s) autor(es) desta música, que me parece ser do final da década de 1970, pelas menções de Dona Ivone Lara, Délcio Carvalho e Sivuca (embora todos já tivessem décadas de atuação na música, o sucesso de "Sonho Meu", de Dona Ivone com Délcio, e "João e Maria", de Sivuca com Chico Buarque, tornou-os mais conhecidos nessa época) e principalmente pela menção a Cartola, falecido em 1980.
"Em casa de crioulo/ É um bolo danado/ Mas é lá que a gente sente/ Que o samba é bem marcado.// O Zé Vicente, bom crioulo, amigo meu/ Me chamou pra um feijão/ No domingo, lá fui eu./ E lá chegando, era grande a confusão/ Zé Vicente na viola, Tia Chica no fogão.// A toda hora, era servido um limão/ Nego saindo no tapa, nego deitado no chão/ Beto Cuíca, um pinguço da maior/ Quis temperar o feijão, bebo como ele só/ No corre-corre, o primeiro que chegou/ Salvou o Beto por um triz, mas o bicho sapecou/ (Diz...)// Lá pelas tantas, veja a turma que chegou/ Veio Martinho da Vila, Elizeth, o Imperador/ E a Clementina, que também é de Jesus/ Fez logo o sinal da cruz e o samba incrementou./ (Diz...)// (Olhaí, minha gente, olhaí, olha quem tá chegando. Jamelão! Olha o Jamelão aí, minha gente! Monsieur Blecaute! Até o Sivuca tá pintando nas paradas! É. Fala, maestro Nelsinho! Maestro Nelsinho puxando o trombone, olha lá. Jorginho do Império, garoto bom... Aparecida! É, dona Aparecida da macumba, tá bom. Dona Ivone Lara! Ah... Délcio Carvalho. Tá bom! Isso... Até o Cartola! Fala, Cartola! Fala, garoto bom! Fala, minha Mangueira! Isso...)"
O coro seguiu cantando o refrão em paralelo à parte falada do final da gravação, então fica difícil entender o tratamento que Gasolina deu a Blecaute, mas me parece ser "monsieur". Os nomes mencionados são facilmente reconhecíveis - "Elizeth", evidentemente, é a Divina Elizeth Cardoso -, à exceção do enigmático "Imperador" (quem???). Curiosamente, este é a única música citada neste texto que junta pessoas reais com personagens fictícios. "Zé Vicente", por sinal, é um personagem de larga trajetória. Ele apareceu na embolada "Cabocla de Caxangá" (João Pernambuco - Catulo da Paixão Cearense), de 1913, como uma das pessoas valentes do sertão de Jatobá (Pernambuco). Também foi o nome que Donga adotou no Grupo de Caxangá, organizado por Pixinguinha para animar o Carnaval na sociedade Tenentes do Diabo, no Rio de Janeiro, em 1919. Cada integrante do grupo tinha no chapéu o nome de um dos personagens de "Cabocla de Caxangá".
Com certeza, o samba mais famoso nessa linha é o clássico "Isso É Fundo de Quintal" (Leci Brandão - Zé Maurício), um dos maiores sucessos da carreira de Leci Brandão. A cantora estava há cinco anos sem gravar (!!!) e aparentemente a Copacabana não apostava muito neste partido-alto, que é a segunda faixa do lado A do LP Leci Brandão (1985). Mal imaginavam os executivos da gravadora que "Isso É Fundo de Quintal" seria uma das músicas mais executadas no Brasil em 1986.
"O que é isso, meu amor? Venha me dizer./ Isto é Fundo de Quintal, é pagode pra valer .// E lá vem o Sereno trazendo um recado do Ubirany/ Vem contando pra gente Bira Presidente vai chegar aqui/ Com uma cara de anjo tocando seu banjo o Arlindinho Cruz/ E Dona Ivone Lara essa jóia tão rara, tão cheia de luz/ E lá vem o Sombrinha fazendo harmonia com seu cavaquinho/ Vai versar um partido prum cara chamado Zeca Pagodinho.// Do Cacique de Ramos vai chegar o Cleber com seu violão/ Tia Doca bonita cantando gostoso e batendo na mão/ Olha a rapaziada fazendo o rateio comprando a bebida/ Deixa para Vicentina esta negra divina fazer a comida/ É tantã, é repique, é pandeiro e cavaco pra ficar legal/ Todo mundo tocando, sambando e cantando no maior astral."
Esta gravação representa para a explosão do partido-alto nos anos 1980 o mesmo que "Festa de Arromba" foi para o rock brasileiro nos anos 1960. Na letra, além da natural menção aos então integrantes do Grupo Fundo de Quintal (Sereno, Ubirany, Bira Presidente, Sombrinha, Cleber Augusto e Arlindo Cruz, cujo nome aparece no diminutivo. Era assim que o chamavam no Cacique, em função de ter o mesmo nome do pai), e a Dona Ivone Lara, há as presenças de Tia Doca, da Velha Guarda da Portela, e "um cara chamado Zeca Pagodinho" (conhece?). Mais tarde, nos shows, Leci abrandou para "meu amigo Zeca Pagodinho", mas convenhamos, em 1985 ninguém sabia quem ele era. Seu primeiro disco só foi sair em 1986. Lembro de ter ouvido um locutor numa rádio de Porto Alegre anunciando que iríamos ouvir uma música com o "Zé Pagodinho". Sem contar que, como existe o sobrenome Godinho, para mim, até não ver o nome do cidadão por escrito, Leci estaria falando em "Zé Capa Godinho"... (parem de rir, ouçam a gravação e vejam se não dá pra entender isso).
Outro samba nessa linha é "Tape Deck", de Jorge Aragão, que foi uma das faixas inéditas do seu CD Ao Vivo lançado em 1999 pela Indie.
"Comprei um tape deck/ O nome é esquisito, mas dizem que é bom/ Convidei os mano black/ Que gostam de rap/ De samba do bom pra inauguração./ Os manos que gostam de rap/ De samba do bom.// O fio do plug era azul, branco e bordô/ Meu cabelo arrepiou quando vi tanto botão/ Liguei o cassete no cabo da internet/ Usei mais de trinta cotonetes só pra limpar o visor/ Foi aí que o bicho pegou/ Era a galera gritando: 'Demorô!'/ Daí em diante a porrada começou/ O evento passava das três da madrugada/ Lá foi todo mundo pra calçada/ Tremenda mancada/ E eles na palma da mão: / 'A gente veio aqui pra ouvir Almir Guinéto/ Racionais MCs, Aniceto, Monarco, Gabriel o Pensador/ Velha Guarda que incendeia, Candeia, Pagodinho/ Vinny e Bochecha com Claudinho/ Que papelão, sangue bom!'"
Quase todos os artistas citados estavam vivos por ocasião do lançamento da música, à exceção de Aniceto do Império e Candeia. Creio que todos os mencionados são reconhecíveis, a não ser a "Velha Guarda" - como Aragão não diz de qual escola de samba ela seria, não temos como saber. Sem contar que ele poderia estar se referindo à "Velha Guarda" em geral, ou seja, todos os sambistas da antiga e pronto.
Outro grande samba nessa linha, "Clube do Samba", de João Nogueira, é também bastante divertido, não se referindo, entretanto a uma festa. A faixa de abertura de seu LP Clube do Samba (RCA, 1979), para a qual João convidou Martinho da Vila a cantar com ele, parece descrever é a vida como uma grande festa:
"(MARTINHO DA VILA - Como é que é, João?
JOÃO NOGUEIRA - Ih, na folia.
MARTINHO - Clube do Samba, beleza?
JOÃO - Melhor que merece.)
Melhor é viver cantando/ As coisas do coração/ É por isso que eu vivo no Clube do Samba/ Nessa gente bamba eu me amarro de montão./ (Eu também)// Tem gente de Madureira, de Vila Isabel e do Méier também/ O pessoal da Mangueira, Leblon, Ipanema e da Vila Vintém/ Uma morena bacana de Copacabana me disse: 'João/ Eu passo toda a semana com o Clube do Samba no meu coração'.// A Dona Ivone Lara me disse que agora está muito bem/ E que o novo trabalho da Beth Carvalho não dá pra ninguém/ Vejam vocês, Alcione e Roberto Ribeiro enfrentaram uma fila/ Foram comprar um ingresso pra assistir o show do Martinho da Vila.// Olha tia Clementina, parece menina, sempre a debutar/ Vive cantando pagode, saracoteando pra lá e pra cá/ Chico Buarque de Hollanda tá tirando onda, não quer trabalhar/ Vive batendo uma bola e tocando viola de papo pro ar/ (Mas sabe viver!)
(JOÃO - Beleza pura!
MARTINHO - Já... Quem ainda não pintou tem que pintar, meu irmão!
JOÃO - Senão vai sambar
MARTINHO - Não dá, não dá...
JOÃO - Vamos ligar essa tomada, compadre!)"
Semelhante à "Festa de Arromba", onde um dos autores é citado na letra, acontece aqui a menção de um dos intérpretes, Martinho. Tentei reproduzir o melhor que pude os diálogos de abertura e encerramento, apesar da gravação oferecer bastante dificuldade para isso.
Outros sambas
Há vários outros sambas nesta linha, embora nenhum deles chegue a se referir a uma festa. Um deles é o jocoso "Sanduíche de Artistas" (Claudio Fontana), gravado pelos Originais do Samba em 1986 na Copacabana:
"(Eu disse que a idéia é nova!)/ A idéia é nova/ Nasceu numa lanchonete em Araruama/ Hoje essa lanchonete ganhou fama/ Por causa do inusitado que criou/ O filho do proprietário, Luisinho (falô, Luisinho!)/ Pra chamar a atenção da freguesia/ Batizava os sanduíches que fazia/ Com nome de artistas famosos do Brasil (do meu Brasil)/ Freqüentadores daquela praia tão famosa/ Entusiasmados com a idéia tão gostosa/ Superlotam a lanchonete todo dia/ A fim de comer tão gostosas iguarias.// (O que come come?)/ Come come/ Come um Fafá de Belém/ Come que esse sanduíche te faz bem/ Presunto, dois ovos, alface, come quente/ Acompanhando sempre dois copos de leite.// (O que mais se come?)// Come come/ Come um Gilberto Gil/ Come que é um bom sanduíche de pernil/ Um Gal Costa todo mundo come e gosta/ Caetano Veloso é gostoso com o quê?/ Com pimenta e dendê!// Come come/ Sanduíche de Xuxa/ Ai que gostoso que ele é/ Feito com pão de centeio bem pretinho/ Com um chouriço no meio/ É o sanduíche do Pelé/ (Vejam só como é)// Come come/ Sanduíche de Rei/ Comi um Roberto Carlos e gostei/ É o que diz quem come sanduíche com seu nome/ Roberto é o sanduíche que mais se consome. (E o que mais se come?)//(Aí, pintou o maior sanduíche de pagode: Beth Carvalho, Martinho da Vila, Alcione, Almir Guinéto e outros mais. Pintou o sanduíche da malandragem: Bezerra da Silva. Aí, ó aí, pintou até cachorro-quente, morou? Lulu Santos. E o sanduíche de balanço? Jorge Ben, Bebeto e outras guitarras mais que têm por aí.)"
Há mais fala no final, mas a audição é bem difícil.
Do mesmo ano, é "Me Engana que Eu Gosto", samba gravado por Marquinhos Satã e Roberto Ribeiro. Também não consegui localizar o nome do(s) autor(es):
"Me engana, me engana, me engana/ Que eu gosto, que eu gosto.// (...)// A turma do rock se diz brasileira/ E é sempre a primeira na MPB/ Não sofre nenhuma influência estrangeira/ É até filiada ao PMDB/ E Chico Buarque nasceu em Caxias/ Caetano Veloso em Maria Angu/ Gal Costa passeando em Madureira/ Maria Bethânia sambando em Bangu."
Também nesse estilo é um dos primeiros sucessos de Benito di Paula, "Charlie Brown", que ele mesmo gravou em LP Copacabana de 1975. Na letra, Benito descreve o que poderia mostrar do Brasil numa eventual visita de seu ídolo Charlie Brown (o herói da série de quadrinhos Peanuts, do cartunista americano Charles Schultz, então uma das leituras preferidas do compositor):
"Eh! Meu amigo Charlie/ Eh! Meu amigo Charlie Brown, Charlie Brown.// Se você quiser, vou lhe mostrar/ A nossa São Paulo, terra da garoa/ Se você quiser, vou lhe mostrar/ Bahia de Caetano, nossa gente boa/ Se você quiser, vou lhe mostrar/ A lebre mais bonita do Imperial/ Se você quiser, vou lhe mostrar/ Meu Rio de Janeiro e o nosso carnaval.// Se você quiser, vou lhe mostrar/ Vinicius de Moraes e o som de Jorge Ben/ Se você quiser, vou lhe mostrar/ Torcida do Flamengo, coisa igual não tem/ Se você quiser, vou lhe mostrar/ Luiz Gonzaga, rei do meu baião/ Brasil de ponta a ponta do meu coração."
"Imperial" era o compositor e produtor Carlos Imperial, responsável pelo lançamento de Roberto, Erasmo e Wilson Simonal.
Sambistas nas festas dos outros
Fora do samba, várias outras músicas têm descrito festas citando cantores vivos - inclusive sambistas. Em três delas, a referência a "Festa de Arromba" é explícita. A primeira delas, por sinal, começa criticando "Charlie Brown". Falo de "Arrombou a Festa" (Rita Lee - Paulo Coelho), que Rita Lee lançou no LP Refestança (Som Livre, 1977), gravado em show feito ao lado de Gilberto Gil (por sinal, mencionado na letra...):
"Ai, ai, meu Deus, o que foi que aconteceu/ Com a música popular brasileira?/ Todos falam sério, todos eles levam a sério/ Mas esse sério me parece brincadeira.// Benito lá de Paula com o amigo Charlie Brown/ Revive em nossos tempos o velho e chato Simonal/ Martinho vem da Vila lá do fundo do quintal/ Tornando diferente aquela coisa sempre igual/ Um tal de Raul Seixas vem de disco voador/ E Gil vai refazendo seu xodó com muito amor/ Dez anos e Roberto não mudou de profissão/ Na festa de arromba ainda está com seu carrão/ (Parei pra pesquisar).// O Odair José é o terror das empregadas/ Distribuindo pílulas, arranjando namoradas/ Até o Chico Anísio já bateu pra tu batê/ Pois faturar em música é mais fácil que em tevê/ Celly Campello quase foi parar na rua/ Pois esperavam dela mais que um banho de lua/ E o mano Caetano tá pra lá do Teerã/ De olho no sucesso da boutique da irmã.// Bilú, bilú, fafá, faró, faró, tetéia/ Severina e o filho da véia/ A música popular brasileira/ A música popular// Sou a garota papo firme que o Roberto falou/ A música popular/ (Citação de "Tico-Tico no Fubá", de Zequinha de Abreu)/ Música popular/ Olha que coisa mais linda, mais cheia de/ Música popular/ Mamãe eu quero, mamãe eu quero/ Mamãe eu quero a música popular brasileira/ (citação de "Disparada", de Geraldo Vandré e Théo)/ Pega, mata e come!"
Curiosamente, aqui ocorre o uso da expressão "fundo do quintal" relacionada ao samba (mais especificamente a Martinho da Vila) -, até prova em contrário ANTES da criação do grupo com este nome. Há um festival de citações na letra, das quais destaco "Ouro de Tolo" (Raul Seixas); "Só Quero um Xodó" (Dominguinhos - Anastácia); a própria "Festa de Arromba" e o LP Vô Batê pá Tu, que o ator Chico Anísio gravou como "líder" do "grupo" Baiano e os Novos Caetanos. A menção a "Banho de Lua" (sucesso de Celly Campello em 1960) certamente se deve a seu relançamento como trilha da novela Estúpido Cupido, que a TV Globo exibiu entre 1976 e 1977. Também se reconhecem referências a "Qualquer Coisa" (Caetano Veloso), gravações de Sílvio Brito ("Bilu Tetéia", de Mauro Celso, de 1975, e "Farofa"), mais "A Garota do Roberto" (Carlos Imperial - Eduardo Araújo), êxito de Waldirene em 1967, "Garota de Ipanema" (Tom Jobim - Vinicius de Moraes) e "Carcará" (João do Vale - José Cândido).
Rita Lee e Paulo Coelho repetiram a dose em "Arrombou a Festa II", que a roqueira lançou em seu LP Rita Lee (Som Livre, 1979):
"Ai, ai meu Deus/ O que foi que aconteceu/ Com a música popular brasileira?/ Quando a gente fala mal/ A turma toda cai de pau/ Dizendo que esse papo é besteira.// Na onda discothéque da América do Sul/ Lenilda é Miss Lene,/ Zuleide é Lady Zu/ Pra defender o samba/ Contrataram Alcione/ É boa de pistom mas bota a boca no trombone/ No meio disso tudo a Fafá vem dá um jeito/ Além de muita voz, ela também tem muito peito/ E a música parece brincadeira de garoto/ Pois quando ligo o rádio ouço até Cauby Peixoto!/ (Cantando: 'Concessão...').// O Sidney Magal rebola mais que o Matogrosso/ Cigano de araque, fabricado até o pescoço/ E o Chico na piscina grita logo pro garçom:/ 'Afasta esse cálice e me traz Moet Chandon'/ Com tanto brasileiro por aí metido a bamba/ Sucesso no estrangeiro ainda é Carmem Miranda/ E a Rita Lee parece que não vai sair mais dessa/ Pois pra fazer sucesso arrombou de novo a festa!// Ziri, ziriguidum/ Skindô, skindô lelê/ Sai da frente que eu quero é comer/ A música popular brasileira/ Lady Laura/ A música popular/ Parabéns a você/ Parabéns para a música popular/ (Citação de "Fé", de Roberto e Erasmo)/ Música popular/ Ah, eu te amo/ Ah, eu te amo meu amor/ Ai, Sandra Rosa Madalena/ Ah, ah, ah, ah/ O meu sangue ferve pela música popular / Ah, fricote, eu fiz xixi/ Fricote eu fiz xixi/ Na música popular brasileira./ (Citação de "Disparada")/(Corre que lá vem os "homi")."
Já vimos em outras músicas um dos autores ser mencionado na letra, mas aqui pela primeira vez o citado é justamente o que canta. Lady Zu e Miss Lene eram mesmo duas cantoras de disco-music lançadas em 1978, mas o verdadeiro nome da última não era Lenilda, e sim Frankislene Ribeiro Freitas. Entre as músicas aludidas, estão "Cálice" (Chico Buarque - Gilberto Gil), "Conceição" (Jair Amorim - Dunga), "Lady Laura" (Roberto - Erasmo), "Sandra Rosa Madalena" (Roberto Livi - Miguel Cidrás). Talvez nem precisasse dizer, mas "Fafá" é a de Belém e "Matogrosso" é o Ney. Ah, e "Chico" é o Buarque.
Podemos dizer que a visão das duas "Arrombou a Festa" em relação ao samba não era das mais amistosas. Se bem que pelo visto, para os dois autores, nada tava bom. O mesmo não acontece na terceira música que se inspira nitidamente em "Festa de Arromba": "Festa da Música", de Gabriel O Pensador e Memê. Mais conhecida, em função do refrão, como "Festa da Música Tupiniquim", foi gravada por Gabriel O Pensador em 1997, no CD Quebra-Cabeça (Sony). Vale a pena reproduzir a ficha técnica do rap, que consta do encarte do disco, mostrando já de cara o espírito da coisa e, de lambuja, o respeito pelo universo do samba:
"Convidados vip: Sandra de Sá e Martinho da Vila
(Memê: Coro, teclados, bateria, percussão e sampler/ Dunga: Baixo/ Cláudio Jorge: Violão/ Paulinho Soares: Cavaquinho/ Marcos "Esguleba": Pandeiro e tamborim/ Silvão: Surdo e ganzá)
OBS.: Esta obra de ficção é uma homenagem a todos que estiveram, estão ou estarão um dia na festa da música brasileira."
Como a letra é quilométrica e não é muito difícil localizá-la na internet, vou reproduzir apenas os trechos relativos ao samba. Gabriel tinha conseguido entrar na festa (acompanhado por Gil, Caetano, Djavan, Pepeu, Elba, Moraes, Alceu Valença, "a galera do Nordeste"), estava se divertindo, mas, como João Gordo vomitara em seu pé, pediu aos Raimundos onde ficava o banheiro e
"(...) fiz papel de mané os sacanas me mandaram pro banheiro de mulher/ As meninas tavam lá e foi só eu entrar que a Cássia Eller, Zizi Possi e a Gal começaram a gritar (Ahhhhh!)/ Quanta saúde! Fernanda Abreu, Daniela Mercury, Marisa Monte, Daúde... calma, eu não vi nada! A Ângela Rô Rô queria me dar porrada.// Mas os três malandros, Moreira, Bezerra e Dicró, me ajudaram a escapar da pior/ Fui pro fundo de quintal, casa de bamba todo mundo bebe todo mundo samba/ Beth Carvalho, Alcione, Zeca Pagodinho Neguinho da Beija-Flor...Diz aí Martinho!/ Comé que é, professor?/ 'É devagar, é devagar, devagarinho'."
A expressão "os três malandros" refere-se ao CD Os Três Malandros in Concert, que Moreira da Silva, Bezerra da Silva e Dicró tinham lançado pela CID em 1995.
Referências-reverências
Gabriel citava Tom Jobim no refrão de "Festa da Música" ("Festa da música tupiniquim/ Que tá rolando aqui na rua Antônio Carlos Jobim/ Todo mundo tá presente e não tem hora pra acabar/ E muita gente ainda tá pra chegar"). O autor de "Águas de Março" também foi o ponto de partida para Chico Buarque compor "Paratodos", lançado por ele mesmo em 1993 no CD BMG de mesmo nome:
"O meu pai era paulista/ Meu avô, pernambucano/ O meu bisavô, mineiro/ Meu tataravô, baiano/ Meu maestro soberano/ Foi Antônio Brasileiro.// Foi Antônio Brasileiro/ Quem soprou esta toada/ Que cobri de redondilhas/ Pra seguir minha jornada/ E com a vista enevoada/ Ver o inferno e maravilhas.// Nessas tortuosas trilhas/ A viola me redime/ Creia, ilustre cavalheiro/ Contra fel, moléstia, crime/ Use Dorival Caymmi/ Vá de Jackson do Pandeiro./ Vi cidades, vi dinheiro/ Bandoleiros, vi hospícios/ Moças feito passarinho/ Avoando de edifícios/ Fume Ary, cheire Vinicius/ Beba Nelson Cavaquinho.// Para um coração mesquinho/ Contra a solidão agreste/ Luiz Gonzaga é tiro certo/ Pixinguinha é inconteste/ Tome Noel, Cartola, Orestes,/ Caetano e João Gilberto.// Viva Erasmo, Ben, Roberto,/ Gil e Hermeto, palmas para/ Todos os instrumentistas/ Salve Edu, Bituca, Nara/ Gal, Bethânia, Rita, Clara,/ Evoé, jovens à vista.// O meu pai era paulista/ Meu avô, pernambucano/ O meu bisavô, mineiro/ Meu tataravô, baiano/ Vou na estrada há muitos anos/ Sou um artista brasileiro."
A maioria dos nomes citados é facilmente reconhecível - com a possível exceção de "Bituca", apelido familiar de Milton Nascimento. Este lindo baião é uma das poucas músicas relacionadas aqui que mesclam artistas vivos com falecidos. Já não viviam em 93 Jackson do Pandeiro, Ary Barroso, Luiz Gonzaga, Pixinguinha, Nelson Cavaquinho, Noel Rosa, Cartola, Orestes Barbosa, Nara Leão, Clara Nunes e Vinicius de Moraes.
O Poetinha é um dos autores de um clássico desta linha, "Samba da Bênção" (Baden Powell - Vinicius de Moraes), incluído no LP Os Afro-Sambas de Baden e Vinicius, que a dupla gravou na Forma em janeiro de 1966. Na parte falada do final, Vinicius se apresenta como um exemplo da síntese do samba: branco na poesia e negro demais no coração.
"Eu, por exemplo, o capitão do mato Vinicius de Moraes. Poeta e diplomata. O branco mais preto do Brasil, na linha direta de Xangô. Saravá! A bênção, Senhora, a maior ialorixá da Bahia, terra de Caymmi e João Gilberto. A bênção, Pixinguinha, tu que choraste na flauta todas as minhas mágoas de amor. A bênção, Sinhô, a bênção, Cartola, a bênção, Ismael Silva. Sua bênção, Heitor dos Prazeres. A bênção, Nelson Cavaquinho. A bênção, Geraldo Pereira. A bênção, meu bom Cyro Monteiro, você, sobrinho de Nonô. A bênção, Noel, sua bênção, Ary. A bênção, todos os grandes sambistas do meu Brasil branco, preto, mulato, lindo como a pele macia de Oxum. A bênção, maestro Antônio Carlos Jobim, parceiro e amigo querido, que já viajaste tantas canções comigo e ainda há tantas a viajar. A bênção, Carlinhos Lyra, parceirinho cem por cento, você que une a ação ao sentimento e ao pensamento. A bênção. A bênção, Baden Powell, amigo novo, parceiro novo, que fizeste este samba comigo. A bênção, amigo. A bênção, maestro Moacir Santos, que não és um só, és tantos, tantos como o meu Brasil de todos os santos, inclusive meu São Sebastião. Saravá! A bênção que eu vou partir e vou ter que dizer adeus."
Quase todos os referidos estavam vivos na época - Heitor dos Prazeres faleceu em outubro de 1966. As exceções eram Sinhô, Geraldo Pereira, Ary Barroso, o pianista Nonô e Noel Rosa.
Noel também é lembrado em "Quero Ser Teu Funk" (Gilberto Gil - Dé - Liminha), música dedicada ao Rio de Janeiro, que Gil gravou no LP Parabolicamará (WEA, 1992):
"Quero ser teu funk/ Já que sou teu fã número um/ Agora quero ser teu funk/ Já - já que sou teu fã número um.// Funk do teu samba/ Funk do teu choro/ Funk do teu primeiro amor.// (...) Mesmo que São Paulo te xingue/ Porque te cobiça o suíngue/ O mar, a preguiça, o calor/ Lembra da Bahia, que um dia/ Já mandou Ciata, a tia/ Te ensinar quizomba nagô.// (...) Rio de Janeiro, Rocinha/ Sempre a te zelar, Pixinguinha/ Jamelão, Vadico e Noel/ Funk são teus arcos da Lapa/ Funk é a tua foto na capa/ Da revista Amiga do céu."
O único citado vivo da letra era (é!) Jamelão.
Já que tocamos no assunto
Para esse texto, não considerei as músicas feitas por um autor em homenagem a um outro, o que tornaria a relação infinita. Em cada música que incluí, foram citados pelo menos quatro artistas. Também adotei como critério que os músicos fossem citados na letra e não apenas em partes faladas no início ou no final da gravação (embora as tenha considerado, quando existiam). E, queiram desculpar, preferi não incluir composições de Caetano Veloso. Embora reconheça que a citação de pessoas vivas nas letras é uma constante em sua obra, fiz essa opção, em grande parte, por constatar que nem sempre é fácil identificar a que(m) Caetano se refere (exemplo: em "Este Amor", de 1989, o verso "Se alguém pudesse erguer o seu gilgal em Bethania" pode ser realmente uma referência a Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethânia, como parece - ou não!). Agora, vejam o lado bom: isso permite que futuramente eu faça outro texto só com essas músicas do Caetano!
Localizei outras quatro músicas citando artistas vivos que não se encaixavam nos critérios adotados, seja por não narrarem festas, muitos por não incluírem sambistas, alguns por só conter poucos nomes, outros pelo fato da menção ocorrer fora da letra.
"Aquele Abraço", de Gilberto Gil, por exemplo, cita apenas três artistas, na fala que abre a gravação de Gil em compacto Philips de 1969:
"Este samba vai para Dorival Caymmi, João Gilberto e Caetano Veloso."
Já em "Meu Nome É Gal", que Roberto Carlos e Erasmo Carlos compuseram especialmente para Gal Costa, os dois autores são citados (o que não aconteceu em nenhuma outra música desse texto), na fala final, mas tenho a impressão que o texto dessa parte é de responsabilidade integral da cantora, que gravou a composição em seu LP Gal (Philips, 1969). Quem além dela poderia escrever isto?
"Meu nome é Gal, tenho 24 anos. Nasci na Barra Avenida, Bahia. Todo dia eu sonho alguém pra mim. Acredito em Deus, gosto de baile, cinema. Admiro Caetano, Gil, Roberto, Erasmo, Macalé, Paulinho da Viola, Lanny, Rogério Sganzerla, Jorge Ben, Rogério Duprat, Waly, Dircinho, Nando e o pessoal da pesada. E se um dia eu tiver alguém com bastante amor pra me dar, não precisa sobrenome pois é o amor que faz o homem..."
Além dos autores, o guitarrista Lanny Gordin, que acompanhava a gravação, ganhava referência. Quem serão Dircinho e Nando?
Pra encerrar, há duas músicas muito legais que não podiam ficar de fora, nem que fosse nesse apêndice. A primeira é "Rolava Bethânia", versão para "Roll Over Beethoven" (Chuck Berry), que o lendário roqueiro Serguei gravou no seu único LP, em 1991. Embora a canção tenha feito muito sucesso na época, o LP não foi lançado em CD. Também não consegui localizar a letra - o que é uma pena, pois ela descreve uma festa! Só lembro de um trecho, provavelmente o final:
"Rolava Bethânia/ Rolava Bethânia/ Rolava Bethânia/ No meio daquela confusão!/ Rolava Bethânia/ Rolava Bethânia/ Rolava Bethânia/ E alguém pediu Cazuza e Barão!"
A outra é uma sátira ao mundo do espetáculo brasileiro, descrevendo a luta de uma dupla sertaneja pelo sucesso. Estou falando de "Tô Naquela que Jogaram na Geni", de Meirinho, gravada por Roberto e Meirinho em 1985:
"(Essa é a história de Roberto e Meirinho, que botaram na cabeça que são artistas)/ Eu vendi minhas galinha, minhas vaca leiteira, vendi meu jegue, vendi minha égua magra, vendi meu carrinho, minha carpideira, vendi tudo que eu tinha lá na roça e mudei pra próxima cidade/ Eu, que pensei que não tava com nada no interior, peguei o trem, vim pra São Paulo, desci na Estação da Luz pensando em ter um pouquinho de felicidade./ Fui na gravadora, fui na televisão, eu fui no rádio, a turma me chamava de atrevido e chato, apesar da voz rouca, desafinada, ninguém quis me dar oportunidade/ Meu Deus, eu tava desempregado, eu tava duro, sofrendo igual a um cão escovando urubu e passando fome nesta cidade!// Eu vivi, eu sofri/ Estou numa boa, bicho, mora?/ Tô naquela que jogaram na Geni.// Em São Paulo, por insistência de alguns amigo, morando numa pensão, eu consegui ficar mais de cinco semana/ Depois me deu um desespero, fui pro Rio de Janeiro, fui ver se descolava algum, mas acabei dormindo na praia de Copacabana./ Lá encontrei Gal, Bethânia, Gilberto Gil, Chico Buarque, Caetano, Jorge Ben, Milton Nascimento, Simone, Blitz, Roberto Carlo, Tim Maia, trocamos idéia mas não teve jeito/ Meu Deus, passar fome do jeito que eu passei no Rio também é farta de respeito!// Eu vivi, eu sofri/ Estou numa boa, malandro, mora?/ Tô naquela que jogaram na Geni.// Lá do Rio de Janeiro, fui a Belo Horizonte, fui a Goiânia, Brasília, passei em Cuiabá, peguei carona pra chegar até Belém do Pará/ Depois fui a Campo Grande, Londrina, Curitiba, Porto Alegre, Natal, Fortaleza, Florianópolis, Vitória, Salvador, fui pra Natal, voltei pro Rio, vim pra São Paulo e já vi que o negócio pra mim aqui não vai dar./ Eu que já tava de saco cheio, cantando nesses programa de televisão, imitando bicha, rebolando, usando peruca e a turma gozando com a nossa cara, eu já tava meio arretado, falei pro meu irmão nós não tamo é com nada/ Ô gente, ajuda nóis, sô! Compra nossos disco! Ô, disc-jóquei! Toca nossas música pra fazer sucesso, porque senão nós vamos vortar a trabalhar no cabo da enxada."
Mantive as faltas de concordância e de "s" nos plurais existentes na gravação. O título da música já é uma gozação com o refrão de "Geni e o Zepelim", que Chico Buarque compôs para a peça Ópera do Malandro (1977) - vocês sabem. E o apelo final à influência da mídia como determinante para o sucesso é bem menos romântico que o dirigido ao "amigo locutor" e ao "amigo da TV" em "Mensagem", de Altay Veloso e Aladim Teixeira, que Leandro e Leonardo consagraram em 1991 numa gravação Chantecler.

1 comentário:

Anónimo disse...

Muito bom seu artigo! Parabéns!